Vivemos em tempos de inversão profunda de valores. Enquanto milhões de crianças enfrentam diariamente a fome, a miséria e a negligência, cresce o número de pessoas que direcionam afeto, tempo e dinheiro a bonecos hiper-realistas.
Esses bonecos são tratados como filhos. Vão ao pediatra, ganham enxoval, fraldas, leite, festas de aniversário e conforme a opção religiosa dos “pais”, até poderão ser batizados. O contraste entre essa fantasia emocional e a realidade nua e crua do cotidiano é, no mínimo, estarrecedor.
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Cada cidadão ou indivíduo é livre para gastar seu dinheiro como bem entender. Contudo, quando o afeto é projetado em um objeto, precisamos refletir: que carência é essa que se tenta suprir?
Em muitos casos, trata-se de uma tentativa, consciente ou não, de comprar amor e atenção, de anestesiar dores internas com substitutos simbólicos. A questão é que isso raramente dura. Pois amor de verdade não está à venda, tampouco se simula com tecido e silicone, muito menos com modinha dos currais das redes sociais.
No Brasil, a fome apresenta níveis vergonhosos. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (https://olheparaafome.com.br/), em 2022 mais de 33 milhões de brasileiros enfrentavam a fome, sendo a maior parte mulheres negras e crianças. Hoje, segundo a FAO-Brasil, esse número é de aproximadamente 8,5 milhões de famintos. Essa é a realidade em carne e ossinho!
O pastor e cantor Marcos Freire criticou a atual tendência e disse não fazer sentido seres humanos comprarem bonecos para cuidar, alimentar, levar ao médico, fazer festas e furar a fila do SUS, enquanto mais de 15 milhões de crianças estão, inclusive, morrendo de fome no continente africano.
Celebrar aniversários e batizar bonecos enquanto crianças reais morrem de fome revela uma empatia distorcida da realidade. É legítimo buscar formas de lidar com traumas e perdas, como infertilidade e gestação interrompida, por exemplo. Mas é igualmente legítimo (e para ontem) questionar por que nos comovemos com objetos e ignoramos pessoas reais.
Por falar em batismo, o padre Chrystian Shankar, um fenômeno das redes sociais, se posicionou sobre a polêmica dos bebês reborn. Shankar disse que não realiza rituais religiosos para bonecos hiper-realistas, como batismos, missas ou orações de libertação. Enquanto há padre que excomunga, há padre que coleciona, como é o caso do padre Fábio de Melo.
Chego a pensar que essa comoção desproporcional com o supérfluo pode também ser um instrumento de distração coletiva orquestrada pelos grandes meios de comunicação.
Pois enquanto nos entretêm com o trivial, seja com bonecos ou com polêmicas fabricadas, deixamos de cobrar políticas públicas eficazes, de protestar contra cortes sociais, de exigir dos nossos representantes o que nos foi prometido durante as milionárias campanhas eleitorais e de perceber o desmonte silencioso do sistema previdenciário.
Estamos diante de uma versão moderna e digitalizada do velho “pão e circo”. Sobre esse assunto – “pão e circo” – em 2021 escrevi um artigo com o mesmo título. Naquela ocasião, citei o escritor francês, Carcopino, que disse que a plebe romana era controlada por meio de lazer e diversão, para que assim não pudessem ter tempo livre para pensar em revoltas contra os senhores espertalhões.
Assim como dito pelo francês, com menos pão, mais distração e curtidas em demasia, esse conjunto de fatores acaba por criar uma lógica emocional que nos bloqueia e anestesia. E quando anestesiados, não reagimos, não vemos, não sentimos. Com isso os espertos nadam de braçada. Consequentemente, estaremos impedidos de renascer (reborn).
Finalizando, esse texto não é um ataque a quem utiliza os bebês reborn como forma de conforto emocional. Muitas dessas pessoas enfrentam dores legítimas, como a perda de filhos ou dificuldades em engravidar ou até são adultos infantilizados.
Não obstante, precisamos de equilíbrio. Precisamos fugir do curral das redes sociais para refletir sobre o que estamos escolhendo ver (e ignorar). Precisamos redirecionar nossa atenção, afeto e energia para onde há urgência real, ou seja, para crianças de verdade, que necessitam de um lar, que sentem frio e fome de verdade.
*Claiton Cavalcante é contador, membro da AMACIC e do ICBR