“Ô professora, o almoço não vai vir logo? Eu tô com fome”. Essa frase se tornou recorrente para os educadores da rede pública de ensino em Cuiabá, que têm de lidar com mais um desafio nesse retorno dos estudantes às salas de aula: a fome. A merenda, que antes era um reforço na dieta dos alunos do Ensino Público, agora se tornou a principal refeição dessas crianças, pertencentes à classe mais atingida pelo aprofundamento da crise econômica.
Segundo dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), apenas 1 em cada 4 crianças realiza as três principais refeições do dia – café da manhã, almoço e janta – no país. Os números preocupam porque ficar de barriga vazia durante as aulas afeta o desenvolvimento e o aprendizado desses estudantes.
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A professora Ana* que trabalha na EMEB Celina Fialho Bezerra, no bairro Altos da Serra, relata que as crianças têm consumido cada vez mais a merenda da escola, chegando a comer três vezes.
“Uma delas chegou a dizer, ‘profê, lá em casa está difícil pra gente conseguir as coisas’. Eu incentivo mesmo a comer, para não irem para casa com fome. Eles também reclamam de sono e estão lentos. Muito mais lentos!”, relatou.
Essa lentidão observada pela professora pode ser reflexo da má alimentação. É o que explica a professora de Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Lorena Barbosa. Ela cita que a alimentação não balanceada e sem valor nutricional adequado, pode prejudicar o desenvolvimento dos alunos futuramente. Ficar sem comer, ou alimentar-se mal, pode fazer com que o cérebro não grave o aprendizado adquirido, como destaca a nutricionista.
"A deficiência nutricional, provocada por um baixo consumo de alimentos naturais, não é capaz de produzir os neurotransmissores em qualidade e quantidade para fazer as sinapses cerebrais, que são importantes para a consolidação do aprendizado", concluiu.
Essa é uma triste realidade que afeta outras escolas da capital. Cássio da Silva é técnico em nutrição escolar, mais conhecido como merendeiro, na Escola Professora Maria Dimpina Lobo Duarte, localizada no Coxipó. Ele notou que cada vez mais as crianças recorrem à merenda da escola para saciar a fome.
“A comida é servida todos os dias e a cada dia que passa aumenta o número de crianças que se alimentam na escola. Muitas delas repetem duas e até três vezes”, conta.
A merendeira da EMEB Dr. Orlando Nigro, no bairro Pedregal, Leydiane Figueiredo, também notou que os alunos estão comendo mais. Como mãe de um estudante nessa faixa etária, ela se sente sensibilizada com essa situação e contou que muitas crianças só têm o almoço da escola com o valor nutricional correto.
“Eles têm comido mais e repetem bastante, são raros os casos de alunos que não comem na escola, pois muitos deles têm a alimentação escolar como principal alimento diário. Além disso, há casos onde o professor vê que a criança está com fome e a leva até o refeitório, onde nós providenciamos algo pra ela comer”, pontuou.
A desigualdade social já era sentida na pele por esses estudantes, mas foi acentuada agora, com a pandemia de covid-19. A crise sanitária global fechou inúmeras empresas e deixou muitas pessoas desempregadas. O que já estava ruim, ficou ainda pior. Colocar o alimento na mesa deixou de ser algo habitual e passou a ser um desafio diário para milhares de famílias.
As escolas citadas anteriormente ficam nas regiões Leste e Sul da capital, mas essa realidade não é exclusiva dessas regiões. Na região Oeste, por exemplo, alunos da escola E.E Ulisses Cuiabano, situada no Jardim Cuiabá, passam por situação parecida. O professor Leo Floriano, que leciona Química na unidade, conta um pouco da vivência.
Ele conta que seus alunos começaram a ficar mais ansiosos conforme o horário do intervalo se aproxima, pedindo para ir ao banheiro ou beber água, cujo objetivo é passar pela cozinha e verificar o cardápio do dia.
“Eu enxergo muito a inquietação deles. O intervalo é às 8h50, mas quando dá 8h30 eles querem sair para guardar lugar na fila e saber o que é de comida. Além disso, por se tratar de alunos do ensino médio, muitos tinham vergonha de comer o lanche da escola. Era mais chique ir à cantina e comprar um salgado e refrigerante, mas hoje a cantina anda bem menos movimentada”, avaliou.
VIVER ESTÁ MAIS CARO - A inflação de 2021 chegou aos incríveis 10,67% no mês de outubro, sendo a maior alta desde 2002, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Esse boom chegou aos alimentos com a cesta básica custando R$ 648 em Mato Grosso, segundo o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (IMEA).
O valor representa 71,28% da renda de uma família que vive com um salário mínimo (R$ 1.100,00). A alta nos preços virou rotina para os brasileiros, que durante esse ano viram a gasolina chegar à R$ 7,00 nos postos, o gás de cozinha a R$ 140,00 e tiveram que trocar a carne vermelha por opções mais baratas, como porco, frango ou o ovo.
Essa troca por opções mais baratas foi observada pelo professor Léo, durante conversas em sala de aula. Ele diz que muitos pais têm trocado as proteínas por alimentos ultraprocessados, que por sua vez têm valor nutricional inferior.
“A carne vermelha é quase um luxo por causa do preço. Eles comem outras opções, além de produtos ultraprocessados. Já ouvi relatos de estudantes que o almoço foi um macarrão com salsicha ou arroz com salsicha, por ser um condimento muito barato”, disse, lembrando do episódio da fila dos ossinhos em Cuiabá, que repercutiu nacionalmente.
O alto consumo de alimentos ultraprocessados também é maléfico à saúde, conforme explica Lorena. Ela relembra que essa substituição de alimentos saudáveis pelos industriais já vem desde antes da pandemia, onde o brasileiro trocou o arroz, feijão, carne, leite, ovos, frutas e verduras por biscoitos de pacote, refrigerantes, salgadinhos, balas, salsicha e etc. Essa decisão custa caro à saúde do público infantojuvenil, tanto física quanto mental.
"A curto prazo, [a má alimentação] vai estar ligada ao ganho de peso, porque os processados tem um teor calórico altíssimo e são muito pobres em nutrientes. Consequentemente leva também a uma deficiência de nutrientes importantes para o crescimento e desenvolvimento correto. A longo prazo o próprio ganho de peso, provocado pela má alimentação, vai levar ao desenvolvimento de doenças, como obesidade, diabetes melitus, hipertensão arterial, câncer, osteoporose, entre outras", alertou.
À reportagem, Léo também cita que alguns de seus alunos estão em situação ainda mais grave. “Tem famílias se reunindo para pegar doações de ossinhos na frente de açougues. Pais que perderam os empregos, casos de alunos que abandonaram os estudos para poder ajudar na renda de casa e se fazem reféns da ‘uberização’, se tornando motoboys, frentistas e outros subempregos, para sustentar a família”, contou.
Durante o ensino à distância, a Prefeitura distribuiu aos estudantes do ensino público uma cesta básica por mês, que seria equivalente à merenda oferecida nas unidades de ensino. No entanto, o alto preço do gás de cozinha continuou dificultando a vida dessas famílias, que muitas vezes não tinham como preparar esses alimentos.
Essa situação se tornou realidade em todo o país e acidentes causados por "gambiarras" para cozinhar tomaram as manchetes dos jornais, principalmente em casos onde a família arriscou usar álcool ou combustível para acender fogões improvisados.
"Como professor de Química, expliquei aos meus alunos os riscos que muitas pessoas, em desespero por não ter como adquirir esse gás, usaram vapor de álcool ou gasolina para cozinhar e sofreram queimaduras”, finalizou o educador.
Contudo, algumas famílias afirmam que a cesta básica não era entregue regularmente, como é o caso da manicure Julia Vick, mãe de um aluno da rede municipal. Ela afirma que desde que as cestas foram oferecidas, ela só pegou três vezes.
“Para quem tem criança, ainda mais em fase de crescimento - que come toda hora -, não muda muita coisa. Eu peguei logo no começo [em 2020], aí no final, época de final de ano e agora em 2021. Não desafogou muita coisa não. Se eu dependesse só deles teria passado fome”, pontuou.
2022 PODE PIORAR - O cenário, que já está ruim, tende a piorar ainda mais em 2022. A análise é feita por economistas renomados e já foi mencionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). De acordo com o economista Vivaldo Lopes, a realidade dessas famílias tende a ser diretamente impactada pelo encerramento do auxílio emergencial, a extinção do programa Bolsa Família e a incerteza do ‘Auxílio Brasil’, novo programa do Governo Federal que ainda está sendo implantado.
“Será preciso ter moderação com o orçamento doméstico. Essa pandemia elevou o custo de vida de todos e, ao que tudo indica, teremos que conviver com a inflação alta ainda em 2022. O preço de energia elétrica, combustível e alimentação continuarão altos e a tendência, infelizmente, é a inflação aumentar”, avaliou.
Para tentar frear o custo de vida em Mato Grosso, a Assembleia Legislativa aprovou na última quarta-feira (24) o projeto de lei complementar, que reduz o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) dos combustíveis, energia e comunicações. No entanto, a medida não contempla os gastos com a alimentação e passa a valer em janeiro de 2022.
Estagiária sob a supervisão do editor Tarley Carvalho**