Fernando Henrique Guerrero criou uma farsa para fugir da Justiça. Ele se fazia passar por clínico geral em Sorocaba, interior de São Paulo, mas sequer tinha diploma e virou réu pela morte de uma paciente. O repórter Maurício Ferraz seguiu o rastro de mentiras do falsário.
O Fantástico foi ao cemitério do Campo Santo, Guarulhos, no início de junho, para tentar descobrir o paradeiro do homem que criou uma vida de mentiras.
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A assinatura da médica Cláudia Obara aparece no atestado de óbito de Fernando. Ela disse que o conhece e não assinou o atestado porque Fernando não morreu.
Investigação em Sorocaba
Em maio de 2011, Fernando deixou Guarulhos, onde vivia com a família, para trabalhar como médico na Santa Casa de Sorocaba. "Ele foi contratado com diploma falso e exercia todo o dia a medicina como se médico fosse", diz o promotor de Justiça Antônio Farto Neto.
A polícia chegou até Fernando após prender Camila Aline da Silva Matias Rocha, que disse que foi indicada para trabalhar como falsa médica por Fernando.
Camila era procurada pela Justiça suspeita de matar um homem na zona leste da cidade de São Paulo durante um roubo.
Em um quadro dos plantonistas da Santa Casa, é possível ver os nomes Bruna e Ariosvaldo, as identidades falsas que a dupla usava para atuar como médicos.
Depois de preso por falso exercício da medicina, Fernando alegou que era pressionado pela família a trabalhar como médico.
“Na verdade, assim, a minha família já é uma família que mexe com o hospital. Eu acabei não querendo contar, que não consegui, que eu larguei o curso de medicina por várias pressões, e acabei falando que fui fazer residência pra minha família em Sorocaba”, disse Fernando.
O promotor afirma que Fernando teria feito até o terceiro ano da faculdade de medicina. A médica Cláudia Obara diz que não sabia que ele era um falso médico, porque foi até na formatura dele. Fernando chegou a produzir uma falsa festa de formatura. Somente ele, a família e amigos.
“Muitas pessoas procuraram a polícia porque conseguiram se recordar da família ter sido atendida por esse determinado ‘profissional’. Mais de 20 famílias procuraram a polícia”, afirma o promotor.
Em outubro de 2011, a mãe de Francisco Rodrigues, Helena, foi atendida pelo falso médico Fernando. As queixas que ela tinha eram vômito e dor abdominal.
"Minha irmã falou para ele [Fernando]: 'Mas não passa a dor dela.' Daí deu mais remédio pra ela", conta Francisco. Depois de medicada, dona Helena foi liberada e voltou pra casa.
"No outro dia, às 10 horas, minha irmã ligou dizendo que minha mãe estava passando mal. Cheguei lá a mãe estava morta", conta Francisco.
Dona Helena Rodrigues morreu de infarto. Para os promotores, Fernando não foi capaz de identificar o real problema dela. "[Dona Helena] tinha uma dor que aparentava ser uma dor cardíaca e acabou diagnosticada como uma dor nas costas", diz Antônio Farto Neto.
Na época, o falso médico garantiu o que não tinha autoridade para garantir. "A queixa dela não tinha nada a ver com parte cardíaca naquele dia", disse Fernando.
Mas Fernando reconheceu que já tinha atendido a dona Helena um mês antes. "Eu reparei que ela era uma paciente cardíaca, ela estava com falta de ar. Eu pedi a internação dela. Eu conduzi ela à internação, [pedi] alguns exames, onde ela ficou, se eu não me engano, 12 dias internada", disse Fernando.
A atual administradora da Santa Casa de Sorocaba informou que o caso do falso médico ocorreu quando uma outra instituição tomava conta do hospital, e que não tem competência para se manifestar sobre os atos ocorridos na época.
Fernando virou réu pela morte de dona Helena. Em 2019, enquanto aguardava o julgamento, conseguiu uma autorização para passar a usar o sobrenome do pai biológico. Fernando Henrique Guerrero passou a se chamar Fernando Henrique Dardis.
Em julho de 2023, Fernando, de nome novo, apresentou um atestado para adiar a sessão do tribunal do júri. A audiência foi remarcada para fevereiro de 2024, mas também não aconteceu. Um outro atestado médico indicava que o advogado de defesa estava com dengue. Na data da terceira, Fernando estaria internado, assim como na quarta.
Em janeiro deste ano, a defesa disse que o réu não poderia comparecer ao julgamento em definitivo. A Justiça recebeu o atestado de óbito de Fernando Henrique Dardis.
“Nós desconfiamos desse atestado de óbito pela quantidade de fraudes que ele já tinha feito para chegar na condição de falso médico em Sorocaba”, afirmou o promotor.
Os promotores tiveram certeza da fraude em março deste ano, quando Fernando, apesar de oficialmente morto havia 2 meses, compareceu a um cartório de Guarulhos.
"Como a ficha dele nesse cartório estava desatualizada, o funcionário acabou fazendo uma atualização dessa ficha, inclusive com fotografia dele", explica o promotor Neto.
O Fantástico acompanha o caso do falso morto desde abril.
A família de Fernando é dona de uma empresa de assistência médica que tem ligações com dois hospitais em Guarulhos. E foi na porta de um deles, o Brás Cubas, que encontramos a doutora Cláudia Obara, a médica que nega ter assinado o atestado de morte.
O nome da doutora Cláudia também está em um relatório médico enviado à Justiça com o logotipo do hospital Brás Cubas. O documento dizia que Fernando tinha sido transferido para lá no dia 26 de dezembro do ano passado e morrido em 5 de janeiro.
Mas Fernando nunca foi para o hospital. A doutora afirma que não reconhece as assinaturas nos dois documentos.
"Isso aqui está estranho. Eu não faço assim completo", diz Cláudia ao analisar a sua assinatura no atestado.
Além de trabalhar nos hospitais, Cláudia é bem próxima da família de Fernando. "Eu fui madrinha de casamento dele. Eu falei com ele ontem, anteontem, eu falei com ele. Essa semana ainda", diz a médica.
Claudia ligou para ele na frente da reportagem. Na ligação, ele diz que vai mandar um advogado.
“Essa certidão de óbito ela não assinou. Ela não pode ser condenada por uma ação que efetivamente ela não tomou. Inclusive ela não estava no hospital no dia e no horário do óbito do Fernando”, informa o advogado de Cláudia, Luís Mauro Sacchi.
A Polícia Civil foi avisada no dia 20 de maio que a prisão do falso médico havia sido decretada pela Justiça. Mas, segundo funcionários do hospital, Fernando continuava frequentando normalmente o setor administrativo e nenhum policial apareceu atrás do foragido.
Os promotores suspeitam que policiais que trabalham em Guarulhos possam estar dando proteção a Fernando.
O Fantástico foi ao cemitério municipal de Guarulhos para tentar descobrir quem está enterrado no lugar do falso médico.
Um documento oficial da prefeitura de Guarulhos mostra o número do registro da morte e o local onde o corpo de Fernando Henrique Dardis estaria sepultado. Mas agora o sistema mostra outro nome.
A prefeitura de Guarulhos disse, em nota, que pediu abertura de sindicância para apurar as denúncias sobre a troca de nomes no registro do cemitério.
Entre os documentos apresentados para comprovar a falsa morte de Fernando, tem até a nota de uma funerária com os valores do velório e do enterro. O Fantástico foi até lá e conversou com a dona, que não reconheceu o serviço.
Ricardo Rodrigues dos Santos seria o contratante dos serviços funerários e também quem teria ido ao cartório registrar a certidão de óbito. Ricardo trabalha no setor de Recursos Humanos do Hospital Brás Cubas.
O Fantástico recebeu uma nota da empresa Med-Tour, que não aparece como sócia do Brás Cubas, mas é de propriedade da família de Fernando. Se disseram surpresos pela notícia narrada pela reportagem e negam envolvimento em qualquer irregularidade.
Já a Secretaria de Segurança de São Paulo informou que as operações para prender Fernando seguem em curso e que os detalhes serão preservados até a captura.
A defesa da funerária reafirmou que não foi realizado qualquer serviço de assistência e tampouco venda de plano para Fernando.
O advogado Felipe Gomes de Souza, que tinha enviado à Justiça os documentos a respeito da morte de Fernando, diz que foi usado na suposta fraude e que registrou boletim de ocorrência.
A nova defesa do falso médico considera injusta e desproporcional a acusação de homicídio feita ao cliente, assim como o pedido de prisão preventiva. E decidiu neste domingo (22) à tarde enviar um vídeo, em que o falso morto e foragido da Justiça, se defende.
"Venho a público esclarecer que estou vivo, que agi sozinho em um momento de desespero. Lembrando que a dona Helena foi atendida por mim, foi internada, passou por mais três médicos e veio a óbito. Eu não aceito por não ter nada no processo que me indique esse crime e desculpa a todos os envolvidos", disse Fernando na gravação. Ele não explicou quem foi enterrado na sepultura que estava no nome dele.