Um culto evangélico em uma igreja cedida para vacinação contra Covid-19 em Ananindeua, região metropolitana de Belém, gerou polêmica. A celebração acabou pouco depois do previsto na sexta (17), às 8h, sendo que centenas de pessoas aguardavam atendimento dentro da igreja durante o culto.
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Tudo foi registrado por uma fotógrafa em vídeo publicado em rede social e um trecho também foi compartilhado pelo prefeito da cidade, Daniel Santos (MDB), conhecido como Dr. Daniel. As duas publicações somavam mais de 70 mil visualizações até 11h desta segunda-feira (20). As imagens estão sendo analisadas por advogados, que pretendem formalizar uma denúncia - veja mais abaixo.
A fotógrafa Nay Jinkss foi junto à namorada, Ana Mendes, ao ponto de vacinação disponível mais próximo da casa onde mora, a igreja Labaredas de Fogo. No local, Ana Mendes estava na fila para receber a 2ª dose da vacina. O casal chegou por volta das 7h30, recebeu a senha 401 e aguardava o atendimento, previsto para iniciar às 8h, mas atrasou cerca de 10 minutos até que o culto evangélico terminasse.
"Todos os enfermeiros estavam a postos já, só que a pastora seguia pedindo o dízimo até concluir o culto", afirma Nay. Segundo ela, o ponto concentrava a maioria dos moradores do conjunto Cidade Nova para a aplicação das doses.
"Havia umas mil pessoas ali. Quando chegamos, tinha uma banda tocando, achamos até legal a animação, fomos aguardar sentadas, até que a pastora cita algo relacionado à 'macumbaria', tentando ofender as religiões de matriz africana", relata.
O G1 procurou a Prefeitura de Ananindeua, que informou por telefone, por meio de assessoria, que não iria se posicionar e se limitou a responder que o atraso não impactou no atendimento da vacinação. O G1 também tentou ouvir o prefeito de Ananindeua e a igreja Labaredas de Fogo, mas não obteve retorno até a última atualização da reportagem.
Repercussão
Ainda segundo Nay, a maior repercussão do vídeo que compartilhou veio no dia seguinte, quando o prefeito resolveu publicar um trecho da gravação em que a fotógrafa diz "estar no inferno", logo após ouvir a pastora falar em "limpar [...] toda obra de macumbaria, toda a obra de bruxaria".
"Acordo com mensagem falando do prefeito, que tinha publicado meu vídeo recortado. Eu estava fazendo uma denúncia, de atraso na vacinação, e ele acabou invertendo o contexto de intolerância religiosa, que sofri junto com a minha companheira, além de outras pessoas que possam ter se sentido desconfortáveis ali", conta Nay.
Após a postagem no perfil do prefeito, a fotógrafa, que é umbandista, chegou até a ler comentários de que ela "deveria se ajoelhar na cruz". "De alguma maneira, ele tentou me ridicularizar, me diminuir, isso é muito simbólico, ainda mais por ele ser um homem branco, servidor público, em um lugar de poder, usando a imagem de uma mulher negra, lésbica, umbandista. É bem delicado!".
"A liberdade de expressão da parte dele termina quando ele faz um recorte, muito simbólico, da denúncia de um 'culto-vacinação', e invisibiliza toda a crítica que fiz, em vez de apurar o que aconteceu", afirma.
Nay reclamou de não haver vacinação em espaços também como escolas, ginásios, além de igrejas. "Imagina se a vacinação fosse em um terreiro e simplesmente começasse uma gira, ou uma batida de tambor", conclui.
Direito e liberdade religiosa
A advogada Natasha Vasconcelos, presidente da Comissão das Mulheres e das Advogadas da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Pará (OAB-PA), acompanha o caso de Nay Jinkss. Ela defende que a cessão de igreja para uma ação de política pública deve respeitar as finalidades definidas, em respeito à laicidade e evitando o privilégio de religiões em detrimento de outras.
"Os templos religiosos estão sendo cedidos por diversos motivos, seja ampliação da imunização, condição mínima de conforto, respeito, e evitar aglomeração. Mas ainda é uma política pública que está acontecendo no espaço", afirma a especialista.
Com isso, ela cita sobre a importância de denúncias relacionadas a esses locais serem verificadas. "Nesse caso é muito grave que uma cidadã, trabalhadora, precisando da vacina cedo de manhã e no local mais próximo, que é a igreja onde foi submetida a um culto de religião diferente da crença que ela tem, e dentro daquele espaço, ela ainda ouve ataques à sua religiosidade, em uma ação de demonização à sua prática religiosa", analisa a advogada da Comissão da Mulher.
Natasha Vasconcelos lembra sobre a questão da imunidade tributária em relação às igrejas e seu papel na sociedade.
"As igrejas por exemplo possuem a questão da imunidade tributária, que é justamente para promover a liberdade religiosa, mas apesar disso você não vê templos de matriz africana em posição de igualdade econômica e política. Ao contrário, as notícias relacionadas a estes templos estão sempre relacionadas à depredação e destruição, o que parte da literatura denomina de racismo religioso. A consequência disso são as percepções equivocadas que nos impedem identificar o incômodo e o constrangimento gerado na fotógrafa Nay pelo culto que estava acontecendo naquele espaço de vacinação e de política pública".
Sobre a possibilidade de intolerância religiosa, denunciada por Nay, o advogado Emerson Lima, que é presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB-PA e membro da Comissão Especial de Liberdade Religiosa da OAB Nacional, explica que está sendo apurado se houve a quebra do Estado Laico, "ou seja, se houve algum incentivo da Prefeitura de Ananindeua para a realização do culto durante a campanha de vacinação, ou se houve contratempo entre o espaço cedido e a realização do culto".
"Outro ponto que deve ser investigado é se houve proselitismo religioso na campanha de vacinação, ou seja, se os que estavam presentes para serem vacinados estavam sendo coagidos ou de algum modo, incentivados a participar da celebração religiosa, pagamento de dízimo e etc", afirma Lima.
O advogado ainda fala sobre a necessidade de se investigar se "houve o crime de intolerância religiosa com outras religiões, com destaque direcionado para religiões de matrizes africanas".
A Constituição de 1988 determina a separação do Estado das entidades religiosas, a fim de preservar a pluralidade de pensamentos e crenças, segundo Lima. "Nesse sentido surgem as liberdades individuais e a liberdade de crença, que se constitui no direito de optar pelas milhares de religiões existentes no mundo, mudar de religião ou não ser adepto de qualquer crença, como os agnósticos e ateus".
"Por isso, a liberdade de expressão encontra seu limite quando invade a esfera íntima do outro pois não há liberdade de expressão acompanhada de ofensa e diminuição da fé alheia, desrespeitando a opção de credo ou a descrença", conclui Lima.
Desinformação
Ainda segundo os especialistas, outro fato que precisa ser analisado em relação à denúncia feita pela fotógrafa Nay é sobre o vídeo compartilhado pelo prefeito de Ananindeua. Para eles, o trecho foi retirado de contexto e usado sem permissão da autora, o que configuraria o que os advogados chamam de desinformação.
A publicação do prefeito recebeu diversos comentários, principalmente de críticas à fotógrafa. "O que o prefeito faz nesse contexto, na rede pessoal dele, é tirar o contexto da denúncia, expõe a fotógrafa sem permissão, com objetivo de ridicularizá-la diante de fiéis de uma determinada crença, cristã, podendo configurar uma violação ao princípio da laicidade, prevista constitucionalmente", defende Natasha Vasconcelos.
"Existiriam inúmeras formas mais republicanas e democráticas para o prefeito publicizar o caso, e a primeira delas de forma incontestável, e a mais importante, seria apurar a denúncia. Em escolas e universidades cedidas para vacinação, por exemplo, você não vê alguém na fila de espera sendo obrigado a assistir uma aula", afirma a presidente da Comissão das Mulheres da OAB-PA.
Outro especialista ouvido pelo G1, o advogado Hugo Mercês, que é pós graduando em direito digital pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que "compartilhar conteúdo manipulado, recortando falas que levem a uma compreensão distorcida do discurso original, é típico caso de fake news".
"Promover este tipo de desinformação pode gerar repercussões jurídicas severas no âmbito civil e penal. Se o divulgador da desinformação exercer cargo eletivo, pode ser responsabilizado por crime de responsabilidade e perder o mandato", explica.
Mercês pontua que, no âmbito penal, "a pessoa que espalha desinformação pela internet pode responder pelos crimes contra a honra (injúria e difamação, por exemplo)" e, no âmbito civil, "poderá responder por perdas e danos". "Se a desinformação tiver contornos políticos, pode levar o divulgador até a inelegibilidade".