No Brasil, a sensação de que os representantes do povo estão cada vez mais distantes da realidade da população tem se tornado mais do que uma impressão: virou constatação. A recente decisão de deputados e senadores de derrubarem os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um movimento que impactará diretamente no aumento das contas de energia elétrica, é um exemplo cruel e emblemático desse divórcio entre eleitos e eleitores. Em vez de protegerem os interesses da população, especialmente a mais pobre e vulnerável, optaram por agradar lobbies econômicos e setores privilegiados, empurrando para as costas do cidadão comum mais uma fatura impagável.
A derrubada dos vetos ocorre em um momento no qual o país ainda luta contra os efeitos de uma crise econômica prolongada. O custo de vida segue elevado, o desemprego permanece alto em diversas regiões, e o poder de compra do brasileiro médio está estagnado. Ainda assim, os parlamentares acharam por bem preservar encargos e subsídios bilionários dentro da estrutura tarifária do setor elétrico. Esses encargos, que pouco ou nada dizem respeito ao consumo real de energia, acabam sendo repassados ao consumidor final. São valores que não aparecem claramente discriminados na conta de luz, mas que representam uma parte significativa do que é cobrado mensalmente. Trata-se de um sistema injusto, opaco e regressivo, no qual os mais pobres pagam, proporcionalmente, muito mais do que os grandes consumidores.
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A decisão do presidente Lula de vetar alguns desses pontos foi, naquele momento, coerente com uma visão de que é preciso proteger a população de novos aumentos. Ainda que se possa discordar de diversos aspectos da política econômica do governo federal, nesse caso, o veto presidencial era um gesto de responsabilidade social. Mas o Congresso, ignorando completamente os efeitos nocivos da sua decisão, decidiu derrubá-lo. É neste ponto que precisamos nos perguntar com seriedade: a quem estão servindo os nossos representantes? Certamente, não à população brasileira.
A política brasileira parece ter se rendido, de vez, aos interesses de setores com maior capacidade de pressão. O lobby do setor elétrico, um dos mais organizados, poderosos e bem financiados de Brasília, tem se mostrado eficiente em proteger seus benefícios, mesmo que isso signifique penalizar milhões de brasileiros. Os argumentos usados pelos parlamentares para justificar a decisão são frágeis, tecnocráticos e completamente alheios à vida real da população. Falam em "manter a estabilidade do setor", "evitar insegurança jurídica" ou "garantir investimentos", como se isso fosse mais urgente do que garantir uma conta de luz que caiba no bolso do trabalhador.
É um contrassenso que em um país com abundância de fontes renováveis, com potencial imenso para energia solar, eólica e hidrelétrica, tenhamos uma das tarifas de energia mais caras do mundo. Parte disso se explica por decisões políticas como essa: a manutenção de uma estrutura tarifária injusta, repleta de encargos cruzados, subsídios ocultos e pouca transparência. Em vez de promover uma reforma profunda no modelo do setor elétrico, que favoreça a população e a sustentabilidade a longo prazo, nossos parlamentares preferem manter os privilégios de sempre.
A decisão do Congresso é também um sintoma de um problema mais amplo: a crise de representatividade. Quando se observa o comportamento de deputados e senadores, percebe-se que muitos deles atuam como representantes de grupos econômicos e não como defensores do bem público. A votação pela derrubada dos vetos evidencia isso. Não houve consulta popular, não houve diálogo com entidades de defesa do consumidor, não houve sequer um esforço para explicar à sociedade por que essa medida seria, supostamente, necessária. O que se viu foi uma votação rápida, silenciosa, protegida por jargões técnicos, mas com efeitos devastadores.
Enquanto isso, o brasileiro comum segue lutando para sobreviver. A energia elétrica é um insumo básico, essencial, que não deveria ser tratado como luxo. Quando a conta de luz aumenta, tudo aumenta: o custo do alimento, da produção industrial, do transporte, do pequeno comércio. Os impactos se espalham por toda a cadeia produtiva e afetam diretamente o bem-estar da população. E, mais uma vez, a classe política age como se estivesse acima dessas preocupações.
Não é exagero dizer que a derrubada dos vetos é, sim, um ato de traição contra o povo. Uma traição silenciosa, técnica, escondida entre números e relatórios, mas profundamente perversa. Ela perpetua um sistema injusto, em que o lucro de poucos é sustentado pelo sacrifício de muitos. E ela também reforça a descrença da população na política institucional. Como confiar em deputados e senadores que votam contra seus próprios eleitores? Como acreditar que há um projeto de país quando decisões tão cruciais são tomadas sem qualquer preocupação com seus efeitos sociais?
O mais triste é que esse tipo de decisão não é exceção, é a regra. O Congresso brasileiro tem se mostrado, reiteradamente, mais sensível à pressão dos setores econômicos do que às demandas da sociedade civil. Isso não é apenas um problema moral ou ético, mas um desafio concreto para a democracia. Uma democracia que não ouve o povo, que não protege os mais fracos e que não responde à realidade social está condenada a se tornar uma farsa.
O aumento da conta de luz que virá, e virá, inevitavelmente, será mais um peso nas costas de uma população já exausta. Será sentido pelas famílias que precisam escolher entre pagar a conta ou comprar comida. Será sentido pelas mães que cozinham com gás caro e ainda precisam iluminar suas casas. Será sentido por pequenos empreendedores que verão seus custos aumentarem. E, quando isso acontecer, quem responderá por isso? Quem será responsabilizado?
É preciso nomear os responsáveis. Os parlamentares que votaram pela derrubada dos vetos precisam ser expostos, cobrados, confrontados. Precisam saber que suas decisões têm consequências. O eleitor precisa lembrar desses nomes nas próximas eleições. Não é admissível que representantes do povo ajam contra o próprio povo e sigam impunes. A memória política é uma ferramenta de resistência. E neste caso, resistir é não esquecer.
A derrubada dos vetos pode beneficiar grupos específicos, sim. Grandes consumidores de energia, empresas do setor elétrico, investidores institucionais. Mas não beneficia, em nada, o povo. Ao contrário: o prejudica. Aprova-se, na prática, um modelo que transfere renda da base da pirâmide para o topo, sem que isso seja explicitado. É a institucionalização do retrocesso.
O momento exige mobilização. Exige imprensa vigilante, sociedade civil ativa, entidades de defesa do consumidor organizadas. Não se pode permitir que decisões como essa passem em silêncio. Não se pode aceitar que o povo brasileiro seja sempre chamado a pagar a conta pelos interesses de uma minoria privilegiada. Se os políticos não estão do lado da população, então a população precisa encontrar novos caminhos, novas vozes, novas lideranças.
Enquanto isso, ficamos com a conta. Mais uma. Mais alta. Mais injusta. E, mais uma vez, sem respostas.
LUCAS LEITE é jornalista, assessor de imprensa e social mídia