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Cidades Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2021, 09:00 - A | A

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RETRATO DA FOME

Enquanto eu estiver viva, minhas crianças não passam fome, diz idosa na "fila dos ossinhos"

Felipe Leonel

Repórter | Estadão Mato Grosso

Os olhos de dona Juraci marejavam na manhã dessa quinta-feira (23), em frente ao Atacadão da Carne, pois foi a última a chegar e quase ficou sem receber a doação de ossinhos e cesta básica, na última ação antes do Natal. A angústia de Juraci Souza, 72 anos, é um retrato da desigualdade social em Mato Grosso, ampliada pela pandemia de coronavírus.

“Eu não tinha um copo de arroz para fazer hoje”, disse ela ao Estadão Mato Grosso.

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Após a filha morrer vítima da covid, dona Juraci passou a cuidar dos seis netos, além da filha adotiva, de 13 anos. Juraci até poderia deixar as crianças com a família paterna, mas resolveu acolher a todos, pois os parentes são “tornozelados” e as crianças viveriam em um ambiente ainda mais insalubre, com alto risco de entrarem para o crime.

“Para não ficar com eles ou ir para doação, aí eu peguei, eu abracei. Enquanto eu estiver viva, eles estão debaixo das minhas asas. Se eu não conseguisse aqui, ia correr atrás. Fome minhas crianças não passam. Eu só tenho medo de ficar de cama”, afirmou a idosa, que apesar de ter 72 anos, ainda não conseguiu se aposentar.

Juraci conta que recusaram sua aposentadoria, pois seu esposo já estava aposentado por invalidez e não poderia ter dois na mesma residência. Agora que seu marido também morreu, ela segue na esperança de conquistar o benefício e propiciar mais qualidade de vida para a família, já que a única renda que tem são os R$ 130 do Bolsa Família da filha.

“Eu durmo aqui na fila. Hoje eu não dormi porque estava chovendo e não tinha com quem deixar as crianças. Graças a Deus, com isso aqui vai dar para passar o Natal”, disse Juraci, já a caminho do ponto de ônibus, enquanto segurava um fardo pesado, que continha alguns alimentos básicos como arroz, feijão, óleo, além dos ossinhos.

Além de Juraci, centenas de famílias formam uma fila nas segundas e quintas no açougue, que fica no cruzamento da Av. Professora Alice Freire Silva e Rua C, do bairro CPA II, em Cuiabá. É este o endereço da “fila dos ossinhos”, conhecida em todo o Brasil, escancarando a incoerência de um Estado que “alimenta o mundo”, mas deixa os seus passarem fome.

A doação dos ossinhos é feita há mais de 10 anos pelos proprietários do açougue. Porém, a crise econômica causada pelas medidas restritivas adotadas no decorrer da pandemia fez com que mais pessoas buscassem os ossos. Se por um lado aumentou o número de pessoas, a divulgação na mídia também atraiu mais empresários e pessoas solidárias diante ao sofrimento dessas famílias.

Segundo a proprietária do açougue, Samara Oliveira, quase uma tonelada de ossinhos são distribuídos no local semanalmente. A empresa realiza a ação há mais de dez anos, sendo que antes era feita de forma espontânea, porém, com a chegada da pandemia, começou a se formar uma fila e Samara precisou traçar uma estratégia para garantir a organização das doações.

“Nós sempre fizemos isso, só que era de uma maneira mais aleatória. Então nós organizamos, para ter a certeza de que eles vão chegar aqui e vai ter as doações”, disse Samara ao Estadão Mato Grosso.

Além dos ossinhos, também são doados cestas básicas e outros tipos de carne, em uma ação que envolve outras empresas parceiras.

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